Escravo do tempo

Escravo do tempo

Eu fico bem incomodado com uma cena do filme “Ensaios sobre a cegueira”, com direção do brasileiro Fernando Meirelles, com base no livro de mesmo nome do escritor português José Saramago. Na verdade, várias cenas me deixam incomodado naquele filme. Quando acabei de assisti-lo pela primeira vez, me vi parado na frente da tela, pensando se tudo aquilo que aquelas pessoas tinham passado, uma cegueira contagiosa, serviria para melhorar algo nelas dali para a frente.

Mas a cena a que me refiro é quando as pessoas encontram, em um supermercado, prateleiras que ainda tinham algumas latas com comidas vencidas. As pessoas avançam umas sobre as outras, numa briga pela sobrevivência, que desconsidera o outro e põe em foco um único ser, que tem que chegar até aquela comida para não morrer de fome.

Eles abrem as embalagens e engolem a comida com voracidade. Lembrei do poema do pernambucano Manuel Bandeira, “O bicho”, sobre um homem faminto num pátio qualquer que, movido pela fome, nem examinava o que comia. Presumo que Bandeira e Saramago não tenham combinado, mas as suas obras conversam entre si.

Ao assistir a outro filme, “O preço do amanhã”, de 2011, fiquei refletindo muito sobre o tempo. Apesar desta obra nos estimular a pensar sobre as desigualdades sociais, também, ela usa o tempo como forma de moeda. Estampado no braço há o tempo de vida, que só é creditado a partir dos 25 anos de cada pessoa. Talvez seja angustiante viver com o tempo contado de forma tão aparente. Há um diálogo no filme que sugere que quem tem pouco tempo não vive plenamente, pois tem que consultar no braço no tempo que lhe resta a cada minuto vivido.

Para comprar alguma coisa, não há moedas, além do tempo. O naturalista estadunidense Henry David Thoreau escreveu: “O preço de qualquer coisa é a quantidade de vida que você troca por isso”. E em “O preço do amanhã” a gente confirma esta afirmativa. A passagem de ônibus custa uma hora. Tendo aumentado sem aviso prévio, a mãe do jovem protagonista embarca, de volta do trabalho, e é surpreendida com o novo preço, duas horas, sendo que ela só tinha uma hora e meia de vida registrada em seu braço.

Suplica ao motorista que deixe que o seu filho, aguardando-a no ponto de ônibus onde ela desceria, pague a passagem. Na negativa fria do motorista, ela olha para os demais passageiros, que não se intimidam em fingir que aquilo não estava acontecendo, ou em esconder o desinteresse e falta de empatia pela pessoa naquela situação.

Esta semana, passando pelo metrô de São Paulo, às oito horas da manhã, num entroncamento que levava a duas linhas, um homem estava sentado, com uma placa escrita: “Fome”. Uma multidão caminhando em sua direção, como que com passos sincronizados, que um tira o pé para o outro colocar, eu também passei por aquele homem sem deixar nem um olhar, arrastado pela multidão, mas com pressa para não perder o ônibus que sairia em meia hora do Terminal Tietê.

Cheguei à plataforma de embarque com 20 minutos de antecedência e um biscoito de aveia e chocolate na bolsa da minha mochila. Passei indiferente àquele homem, que ninguém viu, nem eu; ou que fingiu que não viu, como eu.

Hoje, gravando um vídeo para o meu programa de rádio, recorri a Aldir Blanc, na sua poesia “Resposta ao tempo”. A música já começa colocando-nos para pensar, pois às batidas dadas na porta da frente, pelo tempo, é improvável que alguém consiga ter argumento estando sóbrio. “Eu bebo um pouquinho para ter argumento”. Mas bebe o quê?

Pois foi com essa nuvem na minha mente que comecei a pensar sobre o meu próprio tempo. Boa parte dele é dedicado ao voluntariado, não que isso me faça melhor que qualquer pessoa, pois tenho mais com o que preocupar e gastar meu tempo do que esta comparação inútil. Mas olhei para o meu braço e imaginei quantos dígitos teriam estampados ali, se eu pudesse ver o tempo de vida, tal qual no filme. E pensei mais: se eu tivesse 20 anos, daria mais tempo para as pessoas na rua, que têm pouco tempo de vida, para gastarem como quisessem? Se eu tivesse poucos dias, daria desses parte para uma mãe com uma criança no colo, ambas chorando de fome? E se eu tivesse apenas horas, dividiria com alguém? Se eu soubesse quanto tempo tenho de vida, usaria-o melhor? E se fosse um século que ainda me restasse, como um dos personagens do filme?

De toda forma, voltei meu pensamento para o voluntariado, para fazer uma nova pergunta a mim mesmo, seguindo este raciocínio: faço trabalhos voluntários todos os dias, muitas vezes um dia inteiro. Estou dando meu tempo de vida a algo que eu acredito e que me alimenta, não fisicamente, mas de emoções, valores, conhecimentos. Faria o mesmo se eu tivesse um relógio do tempo de vida no braço, ou seja, doaria meu tempo, como já faço no meu dia a dia, sabendo que aquela doação diminuiria a quantidade de tempo que me resta?

A resposta que consegui até então é: o problema não está no tempo, mas naquilo em que eu acredito que valha a vida. Tendo isto definido, de uma forma geral, busco a alforria do tempo.

Tio Flávio
Palestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Por Tio Flávio

Palestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

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