USP, 20 anos de pesquisa na Lapa do Santo em Minas Gerais

USP, 20 anos de pesquisa na Lapa do Santo em Minas Gerais

A Universidade de São Paulo (USP) completa em 2021 duas décadas de pesquisa científica em um dos mais significativos sítios arqueológicos da região do carste em Minas Gerais: a Lapa do Santo, localizada no município de Matozinhos. O início das escavações foi em 2001 sob a direção do bioantropólogo Walter Neves, que coordenou, até 2009, o Projeto Origens e Microevolução do Homem na América – Uma abordagem paleoantropológica.  Desde 2011 é desenvolvido o Projeto Morte e Vida na Lapa do Santo – Uma biografia arqueológica dos povos de Luzia, cuja coordenação é compartilhada pelos arqueólogos André Strauss e Rodrigo Elias de Oliveira. “Vinte anos! Isso é muito especial”, comemora Strauss, em entrevista exclusiva para TERRAS DAS GERAIS.

Lapa do Santo Burial. Créditos:Andre Strauss

A Lapa do Santo está em um maciço calcário de 30 metros de altura. Nela, os cientistas descobriram algo singular. “As práticas funerárias de Lapa do Santo são interessantes justamente porque elas não são só da Lapa do Santo. Parece que elas eram compartilhadas em outros sítios arqueológicos de Lagoa Santa, como Cerca Grande, por exemplo, Boleiras, e tudo indica que isso era muito específico dessa região”, registra André Strauss.

Ou seja, ainda que até os dias atuais não haja reconhecimento de rituais semelhantes fora dos limites da região de Lagoa Santa – o ideal seria ter mostra para poder comparar – o fato dos habitantes pré-históricos praticarem rituais funerários muito específicos entre si que não são encontradas fora do Carste “é uma evidência relativamente forte para defender que de fato essas populações tinham até certo grau, compartilhavam de uma mesma cultura”, analisa Strauss, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP.  

De onde vieram as tribos que habitaram primeiramente a Lapa do Santo? À indagação feita, o coordenador do Projeto Morte e Vida – Lapa do Santo responde com segurança e clareza. “Talvez uma das inúmeras contribuições de nosso projeto, uma muito marcante, sem dúvida alguma, foi a que a gente conseguiu, pela primeira vez, extrair, sequenciar e analisar o DNA dos esqueletos antigos de Lagoa Santa, particularmente dos esqueletos da Lapa do Santo.”

Lapa do Santo Burial 34

O cientista prossegue detalhando a relevância da análise genética dos nossos ancestrais. “ Essa análise do DNA permitiu, dentre outras coisas, a gente responder com algum grau de segurança, a questão centenária  se os habitantes de Lagoa Santa há 10 mil anos eram ou não ancestrais dos índios atuais”, inicia Strauss.

À comunidade científica e à sociedade, as pesquisas sobre a Lapa do Santo apresentam informações obtidas ao longo de décadas de pesquisa, tanto pelo bioantropólogo Walter Neves quanto por ele, André Strauss. Uma das teorias defendidas é a de que a as tribos de Lagoa Santa derivavam da mesma leva migratória que povoou todo o continente americano. Ou se, ao contrário, como defende, por exemplo,  Walter Neves, eles representariam um grupo humano que chegou ao continente antes dos ancestrais dos nativos americanos atuais.

“Os resultados de DNA mostraram de maneira mais ou menos clara que não há nenhuma especificidade genética, vamos assim dizer, dos grupos de Lagoa Santa de 10 mil anos atrás, que eles têm uma assinatura genética ameríndia, como tantas outras”, avalia Strauss.

Como essas tribos encontradas nos sepultamentos da Lapa do Santo viviam? À inevitável pergunta, o cientista André Strauss remexe o passado, analisa os dados extraídos no século XXI  e diz. “Os estudos em Lagoa Santa, desde Peter Lund, estavam muito focados, muito centrados em duas questões que na verdade são dois lados de uma mesma moeda, que era a coexistência do ser humano com a megafauna e a questão da antiguidade humana em Lagoa Santa e no continente. Claro, são questões importantes, fascinantes, mas em grande medida o movo de vida daquelas populações que a gente está chamando de uma biografia arqueológica daquelas populações era uma questão de menor interesse. Então a gente inverteu um pouco essa lógica. A gente tem outras prioridades de pesquisas agora, que é a de entender como é que eles viviam. Os resultados obtidos através de uma série de análises não foram condizentes com o que se imaginava, que eram grupos de caçadores coletores extremamente móveis, com baixíssima densidade demográfica.”

Crédito : Mauricio de Paiva

Portanto, surgem novos dados sobre a forma de vida das tribos que habitaram a Lapa do Santo. “O que a gente começa a perceber, por exemplo, com as análises de cáries, isótopos de carbono e de nitrogênio, é que a carne era um elemento secundário, se muito terciário na alimentação desses indivíduos que, mais do que nada viviam de vegetais, os mesmos vegetais do Cerrado de hoje em dia, como jatobá, pequi e tantos outros”, observa o cientista da USP.

Outra característica marcante, ressalta Strauss, é o fato das pesquisas proporcionarem às equipes da USP “conhecer os rituais funerários desses grupos, rituais extremamente bem elaborados, uma ênfase muito forte na manipulação dos corpos, análise de mobilidade como isótopo de estrôncio, análise dos ossos longos mostraram que esses indivíduos eram muito mais sedentários do que se imaginava”, afirma, categoricamente.

 A análise do isótopo de estrôncio, por exemplo, mostrou que os indivíduos nasciam, viviam e morriam  na região de Lagoa Santa. “Não quer dizer que eles não saíssem para passear, para caçar, buscar matéria prima para fazer os artefatos, mas que grande parte da vida deles eles estavam lá, em Lagoa Santa”, assinala Strauss. A Lapa do Santo, assim, não era um lugar de passagem de grupos que estavam andando, migrando indefinidamente pelo Brasil Central.

“Não! Realmente era um local de permanência desses grupos. Isso também é altamente contra intuitivo. Então a gente aprendeu muito e segue aprendendo como eles viviam na Lapa do Santo”, assegura Strauss.

Vinte anos de pesquisas científicas. Durante todo esse tempo de trabalho de campo e análises laboratoriais, a diversidade marca profissionais envolvidos nas descobertas da Lapa do Santo. “Então eu diria que é justamente este conjunto, essa congregação de diversas linhas de evidência, passando diretamente por Ciências Humanas, Ciências Biológicas, Ciências da Terra, com muita estatística, com muita interpretação, que talvez seja uma das especificidades de nosso trabalho”, destaca Strauss.

Nesta missão científica, atuam profissionais de todas as áreas da Ciência. Segundo Strauss, “temos muitos arqueólogos, mas no Brasil de forma especial em que até há pouco tempo não havia graduação em Arqueologia, tem arqueólogo formado em Geologia, História, Ciências Sociais, Geografia, Biologia, então tem essa ampla gama”, detalha.

Lado a lado com a USP, atuam inúmeros parceiros no projeto. “Certamente falando apenas de memória vou pecar em esquecer. Dos parceiros internacionais, sem dúvida o mais importante é o Instituto Max Planck da Alemanha, que é onde fiz o meu doutorado, a gente tem um grupo parceiro na USP do Max Planck que eu coordeno. Sem dúvida, é o mais importante desses parceiros”, declara.

Além, a Universidade de São Paulo conta com a parceria do Instituto Weizmann, em Israel, com a Universidade de Ohio (EUA), a Universidade de Toulouse (França), a Universidade de Cape Town (África do Sul). “Todos os anos a USP recebe alunos de outras universidades e do Brasil”, afirma Strauss.

No Museu Nacional, por exemplo, a USP tem grandes parceiros, principalmente o professor Andersen Liryo, assim como a professora Célia, que trabalha com micro vestígios. Outra importante instituição parceira da USP é a UFMG.  “A Universidade Federal de Minas Gerais sempre foi central em desenvolver esse trabalho. Devemos ter recebido dezenas  e dezenas de alunos da UFMG em nossas escavações”, ressalta Strauss.

Legado –  O resultado de décadas de dedicação à Ciência e à difusão do conhecimento, bem como da preservação do patrimônio cultural terá um grande legado da USP para a sociedade brasileira. “Haverá o legado científico das coisas que aprendemos, mas há outros dois legados que podemos chamar de institucionais, que são tão ou mais importantes do que esse legado”, avalia o coordenador do Projeto Morte e Vida – Lapa do Santo.

De acordo com André Strauss, “o primeiro é o legado do patrimônio, pois está sendo formada uma coleção arqueológica única no País do ponto de vista da qualidade, da documentação dessa coleção. Isso é muito importante. Inclusive, agora, já que teve o incêndio no Museu Nacional e no Museu de História Natural da UFMG, que eram dois grandes repositórios de esqueletos de Lagoa Santa”, relembra.

“Hoje em dia você só tem basicamente duas grandes coleções dos esqueletos de Lagoa Santa: a de Copenhague, formada pelo Lund, e da USP formada por nós. Minha ideia, quando os trabalhos encerrarem, é que todo esse material seja levado para Lagoa Santa”, antecipa André Strauss.

“Nesse sentido a gente tem conversado muito com a Rosângela Albano e com o Cleiton, que são do CAALE (Centro de Arqueologia Annette Laming Emperaire), uma instituição bastante séria e bem estruturada. Meu sonho é poder depositar toda a coleção da Lapa do Santo no CAALE, na cidade de Lagoa Santa”, defende o professor da USP.

“Então se isso for acontecer, a Prefeitura de Lagoa Santa tem que abraçar essa ideia. Significa que precisa contratar museólogo, precisa valorizar as instituições de guarda, precisa dar garantias de estabilidade institucional, patrimonial para esse material para que não fique sujeito às oscilações de humores de questões municipais. Isso tudo precisa ser construído. Acho que está sendo”, avalia André Strauss.

Outra grande contribuição do projeto é a formação de recursos humanos.  Na ótica do coordenador do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, a Lapa do Santo treinou centenas e centenas de alunos, pesquisadores, técnicos, enfim, é uma contribuição importante.

“Na mesma linha, a gente abriu a Lapa do Santo para a população local e para quem tem interesse em conhecer, apropriar, perceber que isso é tanto do pesquisador quanto de quem está lá, valorizar. Eu também gosto de pensar que o nosso trabalho na Lapa do Santo contribuiu também para trazer a conscientização e aumentar o interesse das pessoas da região pela Arqueologia, pela Antropologia, pela Ciência e, também, pela preservação desse patrimônio. Isso foi muito importante”, finaliza Strauss, feliz ao chegar aos 20 anos do Projeto Morte e Vida – Lapa do Santo. Afinal, a cada camada de terra sutilmente remexida, artefatos líticos descobertos e a reconstituição da fauna  e da  fauna que existiam à época em que os primeiros humanos viveram, morreram e deixaram para cientistas de hoje segredos que agora ganham luz.   

Por Caio Pacheco

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