As origens pré-históricas do povoamento do carste em Minas Gerais

As origens pré-históricas do povoamento do carste em Minas Gerais

Por Caio Pacheco

Sibéria, mais de 15.000 anos atrás. O frio congelante do gelo no Nordeste da Ásia impõe o drama da sobrevivência a tribos originadas de povos que migraram da África há mais de 50 mil anos. À frente está a Beríngia, uma passagem que une o extremo do estreito asiático da Sibéria ao território que hoje conhecemos como Alasca, na América do Norte. Naquele tempo, a Beríngia se localizava no atual Estreito de Bering, uma ponte de terra conectando a Ásia e a América. “O oceano abaixou seu nível em até 120 metros”, explica Dr. Fabrício Rodrigues Santos, professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), para demonstrar como era possível a passagem dos nômades pela Beríngia.

Em busca de novas terras, alimentos e vida, povos pré-históricos vencem os desafios do período da glaciação, antes de 12 mil anos atrás.

A saga migratória prossegue, agora em território americano. São muitas levas de tribos pré-históricas que se espalham e se fixam em diferentes regiões. No ir e vir, os chamados “primeiros americanos” vão e voltam utilizando a passagem da Beríngia, conta Fabrício Santos, biólogo formado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1990, bacharel em Genética, doutor em Bioquímica e Biologia Molecular. Coordenador do Projeto Genográfico na América do Sul (2005-2015), o cientista dedica 25 anos de sua vida profissional ao estudo genético dos povos, em especial dos indígenas americanos que são oriundos dos povos asiáticos, salienta.

Professor Fabrício Rodrigues Santos, do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG (Caio Pacheco)

“O modelo que a gente tem, consensual entre vários pesquisadores – arqueólogos, antropólogos e geneticistas – é que esses povos vieram da Ásia, do Nordeste da Ásia, daquela área da Sibéria, para as Américas através de uma passagem de terra que é a Beríngia, que hoje está submersa”, reafirma Dr. Fabrício Santos.

Na mesma linha de raciocínio está o professor Dr. André Strauss, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Para ele, não há dúvida de que o modelo migratório tenha sido o que descreve seu colega Dr. Fabrício Santos, da UFMG.

No Departamento de Biologia Geral do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, o professor está conectado com o mundo: colegas de outras instituições superiores de ensino, seja no Brasil ou no exterior, com sua equipe e com estagiários que herdarão todo esse conhecimento. Afinal, é necessário que os estudos sobre o passado avancem no presente em direção ao futuro.

Vencido o desafio de atravessar continentes, os povos pré-históricos, segundo Dr. Fabrício Santos, “acabaram chegando ao continente americano há pelo menos 16.000 anos”, relata. “Então a gente tem um relato muito concreto de que esses povos estão aqui há muito tempo, quando ocuparam todas essas partes de terra que não tinham sido previamente habitadas por nenhum outro humano”, certifica.

Lagoa Santa, Minas Gerais, 1975. Durante a escavação do sítio Lapa Vermelha IV pela Missão Franco-Brasileira liderada pela arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire, é descoberto o crânio de Luzia. Testes estratigráficos sugerem que o fóssil é o mais antigo das Américas: 11.500 anos.

Reprodução facial de “Luzia”, a mais antiga habitante das Américas (Prof. André Strauss, USP)

Belo Horizonte, 11 de janeiro de 2019, campus da UFMG. Os povos de Luzia deram origem à civilização? A partir das descobertas feitas por estudos, incluindo o Projeto Genográfico na América do Sul, ficou evidente que todos os povos pré-históricos americanos que habitaram o Brasil e outros países da América Latina possuem uma raiz comum Siberiana e são ancestrais dos povos indígenas americanos que ainda persistem.

 “Desde o meu doutorado, trabalho com pesquisa científica acerca do povoamento da América, principalmente da América do Sul”, esclarece Dr. Fabrício Santos. “Estudamos variações de DNA entre indivíduos de famílias diferentes que permitem reconstruir os ancestrais comuns dessas famílias, desses indivíduos. A partir disso, reconstruímos a história por onde eles passaram, há quando tempo se deu a divisão dessas famílias, em que lugar aproximado isso ocorreu”, acrescenta o cientista.

“O povo de Luzia ou de Lagoa Santa é um desses povos antigos”, afirma. Para aguçar ainda mais o desejo por novas revelações, o professor titular da UFMG antecipa. “A gente vai ter datas novas, muita novidade interessante pode aparecer no ano de 2019, porque, mesmo com uma certa destruição do crânio de Luzia com o incêndio no Museu Nacional, estamos tentando trabalhar com parte do material que sobrou e fazer o que chamamos de datação direta.”

Dr. Fabrício Santos prossegue. “Hoje a gente diz que Luzia é a mais antiga por causa de dados de estratigrafia, que não é uma datação direta. Dataram os restos próximos dos esqueletos de Luzia, uma metodologia do final da década de 1970 que pode ser afetada por alguma perturbação, algum problema no sítio arqueológico, que também não foi escavado da forma como se faz hoje. Existem muitas dúvidas sobre esta data de Luzia. A única forma de sanar isso é fazer o que a gente chama de datação direta, talvez de um dente de Luzia, retirar um pouco de material biológico para levar para um laboratório ultrassofisticado que consegue, a partir de uma molécula de proteína que existir na Luzia, no dente da Luzia, você consegue datar por Carbono-14 precisamente a data que ela morreu.”, anuncia.

A 51,7 Km de distância da Gruta da Lapinha, em Lagoa Santa, está a Gruta Rei do Mato, em Sete Lagoas. Nela, pinturas rupestres propõem que o povoamento pré-histórico abrangeu a chamada região Lagoa Santa há mais de 10 milênios.

Gruta Rei do Mato, em Sete Lagoas (Leo Drummond)

Até os dias atuais, não houve nenhuma escavação científica na grutinha situada no Monumento Natural Estadual Gruta Rei do Mato, apesar de nela haver pinturas rupestres e de possíveis sepultamentos humanos, inclusive no entorno da gruta, como observa o curador do Museu de Ciências Naturais da PUC Minas, o paleontólogo Cástor Cartelle.

Professor e pesquisador Cástor Cartelle Guerra, curador do Museu de Ciências Naturais da PUC Minas (Caio Pacheco)

A poucos quilômetros da Gruta Rei do Mato, em Matozinhos, porém, equipes chefiadas pelo arqueólogo André Strauss, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (Universidade de São Paulo) realizam escavações, de onde desenterraram mais de 40 esqueletos até o momento.

“Hoje a gente tem uma história de povoamento que confirma as ideias de conexão antiga com a Ásia. O povoamento das Américas ocorreu há pelo menos 16.000 anos, quando se deu a primeira ocupação humana do continente”, garante Dr. Fabrício Santos.

“Falando de América do Sul, são pelo menos 14.000 anos de ocupação. A região de Lagoa Santa deve ter sido ocupada há 12.000 anos, embora os fósseis mais antigos são ao redor de 11.500 anos. São 12.000 anos de ocupação dessa área bem central do Brasil, aqui na região do carste de Lagoa Santa em Minas Gerais”, reforça.

“A zona cárstica permite preservar melhor fósseis humanos, além das paredes de calcário com as pinturas rupestres”, ensina o cientista. “Provavelmente Minas pode ter sido ocupada há 13.000, 14.000 anos, mas se ocorreu lá na Mata Atlântica, não tem resto. Não se preserva muito bem material nesse ambiente de floresta chuvosa, porque tudo é decomposto. Não se encontram fósseis neste tipo de ambiente. Então é muito mais difícil encontrar restos humanos  em uma região como Lagoa Santa. Portanto, a região do carste possui as condições propícias para a gente voltar ao passado”, diz.

Na mesma região cárstica, Sete Lagoas e o Monumento Natural Estadual Gruta Rei do Mato aguardam a chegada de estudos científicos para revelar o passado pré-histórico que sobrevive no presente alguns metros abaixo do solo. Talvez, assim, saibamos as respostas de perguntas que sempre fazemos.

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  • Caio Pacheco é autor do primeiro livro-reportagem sobre a pré-história no Circuito das Grutas em Sete Lagoas.

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